
Tati Bernardi sabe que ser uma mulher que fala sem rodeios incomoda. Aos 45 anos, a escritora, roteirista, podcaster e colunista da Folha de S. Paulo se define como uma pessoa direta e não muito doce, sobretudo por ter uma rotina atribulada.
Com incontáveis projetos em andamento, uma filha de sete anos para criar e três casas para sustentar – a sua, a do pai e a da mãe – sobra pouco tempo para floreios. Essa postura já lhe rendeu hate nas redes sociais e dores de cabeça no trabalho, como a paulistana explica:
— Não sou fácil de lidar e não quero pessoas fáceis de lidar, no sentido de não colocar opinião, nem ter força. O embate com respeito é saudável, tanto na vida amorosa quanto na profissional. Vim de família sem nenhuma grana, então tenho uma força de trabalho que faz com que me irrite se contrato um playboy que me diz "tô angustiado, vou para yoga”.
Seu papo reto, no entanto, tem sido bem recebido. Ela ganhou fama e iração do público com o podcast Calcinha Larga, que comandou ao lado de Camila Fremder e Helen Ramos entre 2020 e 2022 com debates acalorados sobre temas do mundo feminino e com livros como Depois a Louca Sou Eu (Companhia das Letras, 2016), em que aborda temas como ansiedade e crises de pânico. Recentemente, estreou junto do UOL o videocast Desculpa Alguma Coisa.
Tati lança, no dia 14 de abril, A Boba da Corte, livro que levou três anos para ser escrito. Um romance que aborda questões sociais, políticas, amorosas, familiares e de ascensão social.
O embate com respeito é saudável, tanto na vida amorosa quanto na profissional
TATI BERNARDI
Escritora, roteirista e podcaster
Para a escritora, o processo foi longo porque a obra se metamorfoseou ao longo do caminho: sua criadora precisou reunir coragem para entender que não queria escrever um livro sobre seu divórcio e para encontrar a liberdade de detonar alguns dos personagens que fazem parte da sua vida. Também precisou se autorizar a continuar escrevendo sobre suas próprias vivências, algo que foi desencorajada a fazer diversas vezes.
— Escutei de muita gente ao longo da vida, principalmente de editores homens, que o meu processo de amadurecimento como escritora viria se parasse de falar de mim, da minha mãe, da minha vida amorosa, social, etc. De uns 15 anos para cá, há essa ideia de que a autoficção seria inferior, só que aí aparecem fenômenos como Annie Ernaux, que ganhou o Nobel. (...) Com o tempo entendi que o que escrevo sobre mim fala com muita gente — afirma Tati.
Em entrevista por vídeo com Donna, Tati explica a lógica por trás do seu humor nada autopiedoso, compartilha os desafios de criar uma mulher que não reprime seus sentimentos e reflete sobre a sua forma de encarar o amadurecimento e a carreira.

Confira a entrevista com Tati Bernardi
O que te atrai no humor autodepreciativo que vemos em seus trabalhos?
Quando era nova, entendi que queria escrever sobre mim, mas tirando sarro — o que tinha de errado em mim, com um superego afiado me detonando. Apesar de ser feminista, o meu trabalho não é uma militância sem espaço para humor e discussões mais tridimensionais. Escrever sobre as minhas vulnerabilidade me alivia, me organiza, deixa de ser uma coisa estranha e a a ser algo que os outros estão rindo, o que é bom. Tem quem me fala: “Nossa, me reconheci.” Expor meus furos e quedas é uma coisa que me diverte e me conecta.
E não acaba sendo uma faca de dois gumes? Não magoa você?
Contar as minhas quedas é algo vaidoso. Para mim, ter gente rindo de mim é a mesma coisa que alguém me falar “Nossa, que linda, que gostosa”. O que me irrita é quando faço uma crônica de humor me detonando, a pessoa comenta na minha rede social “Acho que você precisa de ajuda”, “Você está triste? Precisa de algo?”. Quando me veem como alguém que escreveu aquilo porque é “tadinha”, isso me ofende. Respondo: “É uma crônica, não estou precisando de ajuda”. É pela conexão, não um pedido de socorro.
O humor te protege?
Me protege muito. Tanto na minha crônica quanto nos podcasts. A minha pessoa jurídica é muito corajosa, escreve livro, lança livro em Portugal. Já a pessoa física é a que tem que pegar o avião, mesmo com fobia, mesmo não gostando de viajar. São coragens muito diferentes.
Você diz que foi cancelada duas vezes. Como lida com isso?
Primeiro fui cancelada porque acabou o Calcinha Larga, que tinha uma audiência gigantesca. Tinha um grupo que reclamava que eu não deixava as outras meninas falarem – e eu falava muito mesmo, nisso melhorei. Mas daí o programa acabou e essas pessoas vieram me xingar por causa disso.
Acho que, na verdade, elas gostavam de mim de forma torta, pois virei trending topic no Twitter. Mas esse ódio é muito pequeno perto da galera que gosta de mim e me curte nas redes sociais. As coisas acabam, mas virou aquela história como se tivesse sacaneado pessoas, quando na verdade só acabou. A gente parou de se entender e não quis mais continuar.
Qual foi o segundo cancelamento?
Criei um podcast junto com o Christian Dunker (Desculpa o Transtorno) e uma galera acadêmica não ou ver um professor da USP associado a mim, que não sou acadêmica. Fui cancelada porque acabei um programa e cancelada porque inventei outro. Só que os dois bombaram na audiência, o que é muito louco: quanto mais você é xingado, mais audiência tem. Mas não foram grandes fontes de sofrimento na minha vida, não me atingiram muito.
Você é direta, tem uma voz forte, que não parece frágil, amedrontada. O seu jeito já te deu problema?
Me irrita muito o não dito em nome da elegância. São aquelas pessoas que não dizem nada, que fazem a política da boa vizinhança, mas que são umas víboras. Sou a pessoa que, numa reunião, às vezes até a um pouco do ponto, fala: "Isso que você está falando é uma bobagem, não concordo", mas 40 minutos depois, almoço com essa pessoa, a elogio e a chamo para minha casa. Talvez tenha que trabalhar isso, porque não é à toa que há discussões sobre assédio moral, e acho importante.
Escrever sobre as minhas vulnerabilidades me alivia, deixa de ser uma coisa estranha e a a ser algo que os outros estão rindo, o que é bom
TATI BERNARDI
Escritora, roteirista e podcaster
Já aconteceu com você?
No final da década de 1990, trabalhei em agência de publicidade, e era muito comum entregar meu trabalho para um diretor de criação e ele dizer: "Você vai ter que refazer tudo. A apresentação da campanha é daqui a três horas e está tudo ruim". Claro que tinha uns babacas que rasgavam o papel, e isso claramente era um assédio moral horroroso. Essas pessoas, pelo que acompanho, não sobreviveram ao mercado, o que está certo.
Fui sobrevivente desse momento, e o que ficou para mim é que não se rasga papel, mas diz para a pessoa: "Isso não está bom. Te ei outra coisa, você fez errado e preciso que refaça". De uns cinco anos para cá, tem gente que não a trabalhar comigo porque falo direto.
Aos 45 anos, onde envelhecer mexe com você?
Ano ado, percebi: "Está rolando umas coisas diferentes, meu rosto, meu braço e minha barriga estão caindo um pouco". Comecei a tratar isso também com humor, escrevendo sobre. É importante dizer que é difícil, e isso não é o oposto do discurso de que a mulher tem que se amar. Deve haver um espaço para dizer: "Me acho linda, gostosa, o cara que não me quiser é um babaca, mas envelhecer é difícil".
Nora Ephron tem um livro chamado Meu Pescoço é um Horror, e dei tanta risada quando ela fala sobre ficar velha, sobre seus pés de galinha, sobre todos dizendo que ela tem que se amar, mas ela “dane-se!”, está detestando seu pescoço. Não acho que isso seja antifeminista. É o poder da mulher de falar que está odiando o seu pescoço. Ela não deixou de ir a uma festa porque o pescoço estava feio; ela escreveu uma crônica expondo isso. Isso é tão poderoso quanto estar pelada no Instagram e dizer "Sou uma grande gostosa".
É maravilhoso a gente estar sendo reconhecido lá fora pela Fernanda Torres, não pelo Neymar, nem pela milícia e nem pela extrema direita, que se Deus quiser não volta
TATI BERNARDI
Escritora, roteirista e podcaster
E como está sendo criar uma filha de sete anos?
Ela é muito sarcástica e engraçadinha. Às vezes, até me olham tipo: "Você não vai educá-la melhor?". E eu respondo: "Não, isso que ela falou é maravilhoso" (risos). Uma vez estávamos no elevador e entrou um senhor muito sem noção. Ela estava voltando da escola, exausta. Ele travou a porta do elevador e ficou falando sem parar, até que ela olhou para ele e falou: "Tá bom, agora chega, eu estou muito cansada" (risos).
Já conversei com ela e disse que não podia falar daquele jeito, mas também falei: "Que bom que você consegue expressar o que sente. Vamos tentar descobrir como fazer isso de um jeito mais educado?". Estimulo muito que ela seja uma pessoa atualizada com os incômodos que ela sente.
Ela está te atravessando também, não é?
Mudei a minha escrita a partir do nascimento da minha filha, porque antes escrevia sobre qualquer coisa, que nada poderia frear o que estava a fim de dizer. Mas, com ela, decidi que não iria expor. Quando Rita tinha dois anos e pouco, um dia falou para mim: "Mamãe, o que sinto por você é que sou ‘apaixo-brava’". Ela inventou a palavra que resume tudo o que senti por pessoas por quem estava muito apaixonada e sem saber direito o que que era aquilo. Saquei que éramos muito parecidas.
Só que, ao mesmo tempo, tinha que educar, então, às vezes, ela fazia um negócio que precisava dar uma bronca na hora e disfarçar que estava maravilhada. Foi uma experiência completamente diferente de tudo na minha vida, e isso me transformou, principalmente como escritora. “Apaixo-brava" foi a palavra mais bonita que já ouvi.
Fazia tempo que a gente não se unia tanto em torno de algo como está ocorrendo com a indicação de Fernanda Torres ao Oscar. Em Porto Alegre temos até pintura em homenagem a ela. O que você tem achado deste momento?
Estou que nem a Tatá Werneck que falou "Não aguento mais pensar na Fernanda Torres", mas penso. A Fernanda é minha amiga, uma pessoa ível e generosa. E ter a alta costura investindo numa mulher que fez humor a vida toda, que é lindíssima, mas uma beleza que vem também de ser uma mulher politizada, intelectual, escritora, militante – não é a beleza óbvia – é algo importante.
Ela sendo tratada também como sexy, quando por muito tempo a mulher engraçada ou politizada não era considerada sexy, vemos uma evolução, que acredito que ser dessa nova onda feminista. É maravilhoso a gente estar sendo reconhecido lá fora pela Fernanda Torres, não pelo Neymar, nem pela milícia e nem pela extrema direita, que se Deus quiser não volta.