É manhã de domingo, abro a janela da biblioteca e o sol entra tímido. Releio Clarice Lispector. Nunca consegui me livrar dela por completo. Me desconheço, percebo. E quantas vezes teremos de ser apresentados a nós mesmos ao longo da vida. Não é o outro que nos causa terror, mas nós que, de repente, nos vemos numa faceta tão distante de quem achamos que somos. Há dias como hoje que também acordo de um longo sono e me deparo com a desordem. Interna. Abri o Instagram e vi um trecho de uma animação em que uma criança corria solta e feliz pelo jardim. Lembrei da infância, e já dizia Lya Luft, eis o chão que se pisa uma vida inteira. Fiquei triste. Parte de mim é tristeza e sei que não preciso de cura para ela. Apenas aceitar que ela me visita e depois, sei, vai embora. Faço um café. Talvez também esteja tentando falar sobre aquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim. Alguns restaram como uma imagem envelhecida, quase desbotada que sobreviveram a agem dos anos. Gente que, de certa forma, ficou. Um tio, uma tia. Os primos se foram, cada um viver sua vida. Até parece que habitamos planetas diferentes. Às vezes tenho a impressão de que primos só existem quando somos crianças. É apenas manhã de domingo e me assombro ao perceber que o tempo ou e a e a.
Às vezes escuto meus pacientes contarem, também tristes, de quando a casa era cheia, da algazarra dos almoços de fim de semana, as crianças correndo por entre os adultos e a cor do dia era viva. Não é fácil nos darmos conta disso. Estar vivo é acompanhar a roda do tempo em ação contínua. Coisas boas acontecem. Verdade, concordo. Era eu a criança que corria por entre os grandes. E lembro do azul do céu, do som da gaita de meu pai sentado à porta que dava para o jardim, da nona de avental com cheiro de comida boa, da mãe estendendo a toalha de mesa, dos tios mais jovens jogando uma pelada, dos primos brigando por qualquer coisa, da tia mais nova apresentando o namorado. Hoje nem a casa existe mais. Mas apesar de triste não sou nostálgica. Relembro aqueles dias como quem olha um álbum de fotografias em que apenas os bons momentos foram registrados.
Meus sentimentos também são água de um instante. Nenhum de nós tem ainda o rosto de antes. Fugir? Jamais. É preciso aprender a habilidade de sermos bons conosco mesmos. Apesar de mudarmos, do coração ficar mais pesado, da responsabilidade se impor e do silêncio crescer, sorrimos porque é preciso abençoar o fato das coisas serem assim mesmo.